Blog •  03/11/2022

70% da qualidade final da carne está relacionada ao bem-estar animal e sua alimentação

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Entenda as principais diferenças da carne bovina do animal confinado para a do animal criado a pasto, e como isso interfere na qualidade final da carne

“Os animais são aquilo que eles comem, assim como a gente.” É assim que Elen Nalério, pesquisadora em Ciência e Tecnologia de Carnes da Embrapa Pecuária Sul (RS), exalta a importância de cuidar da alimentação do gado. Em um bate-papo sobre como a criação pode influenciar no resultado da carne, a também médica veterinária e doutora em Ciência e Tecnologia Agroindustrial reforça os resultados que vê na prática e que chancelam um estudo recente.

O tema da qualidade e segurança do alimento foi eleito como o quinto mais relevante na Pesquisa sobre as Prioridades da Pecuária de Corte Brasileira, no recorte da Região Sul do Brasil, que entrevistou 735 participantes de 193 municípios em 2021. O estudo revelou que é cada dia mais relevante saber a origem do produto exposto para a venda nas gôndolas dos supermercados e açougues. Ou seja, promover a rastreabilidade, saber a maneira como o bovino nasceu, foi criado e abatido.

Já é cientificamente comprovado que a qualidade da carne está diretamente relacionada à vida que o animal leva, ao manejo e à relevância que o produtor dá a esses fatores. Saiba mais na entrevista a seguir.

Já se sabe que o bem-estar do animal é fundamental para a qualidade da carne. Quais fatores mais interferem e devem ser considerados para garantir esse bem-estar?

Elen Nalério − O bem-estar animal é um tema complexo que inclui a forma de criação dos animais, a disponibilidade de água, de alimento, sombra. São muitos fatores. Em termos de qualidade da carne, de produto final, eu diria que o fator mais importante seria a saída da porteira, a retirada deles da propriedade. Porque o animal tem que ter bom estoque de energia, de glicogênio, para, no momento do abate, ter condições de transformar aquele músculo em carne, de acidificar a carne após o abate.

E qual é a forma ideal de fazer essa transição dos animais antes do abate?

Elen Nalério − É importante estabelecer nesse momento prévio ao abate, da saída da propriedade, um bom carregamento, um bom manejo do animal, para que não tenha lesões na carcaça posteriormente. Porque durante o carregamento tem muito esforço do bovino, inclusive é inadequado lidar com eles com pedaços de pau, ferro, às vezes até choque, porque isso gera estresse nos animais. Em geral, o carregamento é um dos momentos mais críticos para os animais, assim como a chegada nos frigoríficos, pois os bovinos são animais de grupo, então, no momento em que começa a separação deles, que são apartados por lotes, as hierarquias sociais que eles já tinham previamente se desfazem. E, logo após isso, há o transporte. São carregados dentro de um ambiente que pode ser apertado, como um caminhão, e eles eram acostumados soltos, então tem que ser uma carga ideal ajustada e com medidas cuidadosas. O deslocamento tem que ser, de preferência, à noite ou em períodos frescos.

Após a chegada no frigorífico, eles ficam em uma dieta hídrica, então é importante manter a água e garantir que tenham um período de descanso para recuperar energia, assim, no momento do abate, haverá uma boa qualidade de carne. É preciso preservar o bem-estar do animal. Muitas vezes, as pessoas pensam que o momento do abate é o momento mais difícil na vida deles, mas não é. Se forem bem conduzidos na insensibilização, eles não passam o sofrimento que se pensa. Se todos esses ritos forem realizados de uma forma adequada e as técnicas forem muito bem conduzidas, é garantida uma reserva energética que é o primeiro quesito de qualidade para a carne: cor vermelho brilhante e que não vai apresentar defeitos de processamento.

Na sua opinião, o que mais impacta a qualidade da carne quando falamos de genética, de sistema de criação e de terminação do animal?

Elen Nalério − Existem estudos que dizem o seguinte: o componente genético, ou seja, a raça, o cruzamento do animal, corresponde em torno de 29 a 30% da qualidade final da carne. Os outros 70% estão relacionados com as práticas de manejo dos animais (da propriedade, sanitário, boas práticas de bem-estar e boa condição física) e de alimentação. Ou seja, muitas vezes as pessoas pensam que só a genética determina a qualidade do produto, e não é, outros fatores correspondem a 70%, um dado muito relevante.  

A genética corresponde àquelas características de maciez da carne, de suculência, e a aptidão para um engorduramento da carcaça e da carne. Determinadas raças apresentam características de marmoreio, por exemplo. Mas as características genéticas só podem ser manifestadas, ou expressadas, se esse animal tiver boas condições de criação e, principalmente, de alimentação durante a sua vida. A alimentação é um dos grandes fatores relacionados à qualidade final da carne, não adianta ter boa genética se o animal passa fome no campo.

Sendo assim, diferenças entre o animal criado a pasto e o animal de confinamento têm relação direta com a alimentação, certo? E quais as principais diferenças?  

Elen Nalério − Na minha opinião, entre um extremo de produção somente com pastagens e o outro extremo de confinamento total, com alimentação por grãos, há sistemas com formação de produtos totalmente distintos. Os bovinos são animais naturalmente prontos para fazer a digestão de fibras, de pasto. Para fazer a digestão de grãos, eles precisam passar por uma adaptação. Essa variação de alimentação faz com que sejam formados tipos de gorduras totalmente diferentes, e isso interfere também no sabor e no aroma do produto, consequentemente.

O animal criado depende do tipo de pasto, de criação e de confinamento também. Porque tem muitos confinamentos que não são tão restritos, não têm uma dieta de alto grão. Tudo vai depender da intensificação dos sistemas produtivos, porque é possível ter uma criação a pasto mais intensificada, até mesmo com uma suplementação, com grãos. E é possível, também, ter uma dieta confinada com alto grão, não tão volumoso na dieta. Isso tudo interfere, mesmo que minimamente, na carne. Uma outra questão são sistemas que aproveitam subprodutos ou coprodutos da agroindustrialização, como, por exemplo, bagaço de uva, casca de arroz, casca de soja, o próprio caroço de algodão (que não é característica da Região Sul). Isso tudo também muda a composição lipídica e aromática da carne, então qualquer tipo de alimento que se dê para o animal permite detectar aromas e sabores distintos.

Animais que pastejam têm uma carne com características específicas, como cor vermelho brilhante, por exemplo. Isso é porque o animal no pasto caminha mais, e precisa oxigenar a musculatura, o que aumenta o teor de mioglobina e origina a cor vermelha mais intensa na carne. Também a gordura tem tons mais amarelados, devido aos carotenoides presentes na pastagem. Em geral, animais confinados têm mais gordura que aqueles que só pastejam. A cor da carne de animais que estão confinados ou altamente confinados é mais pálida, tende ao rosa, e a cor da gordura também é mais clara, branca. Então, basicamente, o teor de gordura é mais elevado nos animais confinados e menor nos animais no pasto. Veja como a alimentação do animal cumpre papel determinante no processo.

E quais as principais diferenças que podem ser percebidas no produto final – aquele que vai para os açougues e para a mesa do consumidor?

Elen Nalério − Nos animais que avaliamos na Embrapa Sul, oriundos de diversos sistemas de pastagem, encontramos um teor de gordura ao redor de 3% no contrafilé. Lembramos que esse é um músculo de eleição para a qualidade de carne, sem gordura subcutânea (aquela capinha de gordura). Já nos animais que são confinados, esse teor de gordura é bem maior e varia, podendo chegar a 15%, dependendo do tipo de terminação. Quando o animal é confinado, o tipo de gordura que se forma nessa carne é de um perfil lipídico com maior teor de ômega 6, se comparado com a carne de animais que pastejam, que têm maior teor lipídico de ômega 3. Quando essas carnes são preparadas, aquecidas, elas vão desprender sabores e aromas distintos. Outro ponto que também interfere é o tempo que o animal fica comendo grão. Há dados de que, dependendo da intensidade de como o grão foi inserido na dieta dos animais, essa gordura pode demorar até 60 dias para mudar a composição.   

A verdade é que, mesmo fazendo essas comparações, é difícil avaliar, ainda que minimamente, porque são sistemas muito diversos e complexos. Mas uma coisa é certa: os animais são aquilo que eles comem, assim como a gente.