Sustentabilidade x pecuária: mitos e verdades
Especialista esclarece mitos que afetam a imagem da atividade e reforça a importância da pecuária para a segurança alimentar, a economia e a sociedade
Especialista esclarece mitos que afetam a imagem da atividade e reforça a importância da pecuária para a segurança alimentar, a economia e a sociedade
A pecuária de corte é uma atividade de grande importância socioeconômica para o Brasil. Mesmo tendo um longo processo e muitos cuidados com os animais e o meio ambiente, a divulgação de informações equivocadas geram uma imagem negativa para a pecuária quando o assunto é sustentabilidade. Impactos ambientais, mudanças climáticas e uso de recursos naturais são alguns dos assuntos nos quais a criação de rebanho é vista como vilã.
Para esclarecer algumas dessas questões, conversamos com Guilherme Cunha Malafaia, pesquisador da cadeia produtiva de carne bovina e coordenador do Centro de Inteligência da Carne Bovina (CiCarne), da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Gado de Corte. Ele destaca que, apesar do histórico extrativista, a pecuária de corte vem passando por mudanças significativas com tecnificação, o que traz profissionalização ao setor.
“Há fortes recomendações técnicas que fortalecem os processos e a sustentabilidade da atividade. O novo manual e o programa de Boas Práticas Agropecuárias (BPA) da Embrapa, por exemplo, foi relançado este ano e dá a todo produtor do país um guia atualizadíssimo de gestão. A partir dessas boas práticas se intensificam os processos de produção e a relação respeitosa e amigável com a natureza, poupando recursos, dando aos animais as devidas condições de expressarem todo o seu potencial, garantindo alimentos seguros, gostosos e saudáveis para consumidores do mundo todo. O Brasil segue protagonista na produção sustentável de alimentos, fibras e energia”, indica Malafaia.
Selecionamos alguns mitos e verdades sobre o tema para o pesquisador esclarecer. Confira.
Guilherme Cunha Malafaia se reuniu com outros pesquisadores do Centro de Inteligência da Carne Bovina (CiCarne) e juntos eles produziram um boletim baseado em dados de 2016 da Universidade de Oxford. É um levantamento de emissão global, por setor, e revela que, de cada 100 kg de gases do efeito estufa (GEE), a pecuária e seus dejetos seriam responsáveis por 5,8 kg, enquanto o setor de transporte por 16,2 kg. Ou seja, o transporte emite quase três vezes mais GEE.
Ainda segundo esse boletim, o mito da emissão maior pela pecuária foi criado por um relatório de 18 anos atrás, da Organização das Nações Unidas (ONU), cujo título já adiantava um viés que não deveria haver em um documento dessa natureza: “A grande sombra da pecuária”. A maior crítica nessa comparação é que, no caso do transporte, teria sido contabilizada apenas a emissão direta da queima de combustíveis fósseis, mas, no caso da pecuária, as emissões indiretas envolvidas na cadeia produtiva foram consideradas.
O metano é um gás de efeito estufa produzido na fermentação ruminal do bovino e que leva o animal a emiti-lo. Ele fica cerca de 10 anos na atmosfera, um tempo relativamente curto, mas ele é mais forte do que o gás carbônico (retém 28 vezes mais calor). Já o CO2 fica até mil anos na atmosfera. A emissão de gás metano tem aumentado muito devido às interferências humanas e o problema é que quanto mais armazena o calor, mais interfere na temperatura global. Um compromisso firmado em 2021 entre diversos países – entre eles o Brasil –, se propõe a reduzir a emissão oriunda de diversas fontes, sendo a produção de alimentos (e a pecuária) apenas uma delas.
“O metano entérico tem vida curta, se transforma em gás carbônico e é usado pelas plantas em razão de seu crescimento, portanto os ruminantes não têm nada a ver com o aquecimento global. Considerando um rebanho estável, o metano entra no ciclo do carbono e o nível desse gás, portanto, permaneceria estável. Todavia, o importante aqui é reconhecer a possibilidade de produzir a mesma quantidade de carne (ou até mais), com um rebanho menor”, explica e ainda exemplifica: “Se aumentarmos a média de fertilidade brasileira dos atuais 65% para 80%, precisaremos de cerca de 10 milhões a menos de vacas para a mesma produção de bezerros.”
Por fim, com relação à redução do consumo de carne como forma de reduzir o aquecimento global, a “Segunda sem carne” é um bom exemplo de como a prática não é a melhor opção, segundo os pesquisadores do boletim. Eles concluíram que, considerando que houvesse uma adesão de 100% dos consumidores de carne brasileira (inclusive da nossa carne exportada), a redução das emissões globais não chegaria a 0,1%. Isso porque todo o rebanho brasileiro (incluindo todos os tipos de animais de criação) emite menos do que 1% dos GEE globais. “O grande vilão dos GEE é o carbono que vem da queima de combustíveis fósseis. Ou seja, uma ‘segunda sem carro’ seria bem mais adequada”, sinaliza Malafaia.
Reduzir a parte do rebanho que gera ineficiência ao sistema é interessante para reduzir as emissões, mas não a única forma. Essa conclusão também está no mesmo boletim dos pesquisadores da CiCarne: há várias estratégias que podem ser usadas para reduzir a emissão.
Eles pontuam caminhos como o uso de áreas com sistemas de integração lavoura-pecuária-floresta, que usam o conceito de neutralização de GEE ou carbono neutro. Há também o investimento da indústria de nutrição animal em produtos que focam no aumento da eficiência alimentar pela redução da emissão de metano. Por exemplo, as intervenções nutricionais como o uso de valores mais elevados de gordura na dieta, ou uma formulação com menor teor de fibra. Aditivos de vários tipos estão disponíveis e, apesar dos efeitos nem sempre serem consistentes, acabam ajudando. Tanto que, recentemente, foi lançado o primeiro aditivo especificamente desenvolvido para reduzir a emissão de metano entérico, podendo chegar a 30% menos.
De fato, o desmatamento já foi realidade, assim como a emissão dos GEE, a perda da biodiversidade e as alterações no ciclo hidrológico, fatos esses que ainda moram no imaginário popular, mas são um cenário ultrapassado, de acordo com especialistas que conhecem e atuam na região.
“Cada fator que gerou a imagem negativa se transformou em um estereótipo que está 40 anos atrasado, pois a pecuária na região evoluiu focada em produtividade”, explica o pesquisador Moacyr Bernardino Dias Filho, da Embrapa Amazônia Oriental. Ele foi testemunha das mudanças no local porque foi contratado pela Embrapa, na década de 1980, com o desafio de buscar soluções para diminuir a degradação das pastagens de lá e aplicar estratégias de mitigação dos impactos ambientais até então estabelecidos.
Dias Filho destaca a enorme área de pastagens que a Amazônia brasileira tem, e como a evolução da pecuária se engrandeceu quando os produtores começaram a olhar para as qualidades da região. Como esse processo está em transformação, ele listou 4 fases de desenvolvimento da atividade por lá para facilitar a compreensão de contextos. A primeira fase concentra o período de 1622, início da atividade na região, até 1960, quando a atividade era improdutiva.
A segunda fase, de 1960 a 1980, é marcada pela plantação de pastagens, introdução do zebu e desmatamento. Com a criação da Embrapa, em 1970, houve o desenvolvimento de opções de forragens e a mudança de mentalidade, sendo que a pastagem passou a ser considerada uma cultura agrícola. A terceira fase, que se estende até 2020, se caracteriza pela consciência e tentativa de recuperar aquilo que foi mal feito. Também já é um momento de adoção de tecnologia de recuperação, pastagens produtivas e mais animais por área. A quarta fase é a atual, com aspectos como aumento da produtividade e da segurança alimentar, redução do desmatamento, manejo preventivo e preservação ambiental.
A pecuária é uma atividade composta por diversos ramos, e no Brasil o destaque é a pecuária de corte de que estamos tratando. Segundo dados da USDA, do início de 2022, o Brasil tem o segundo maior rebanho bovino do mundo e o primeiro maior rebanho comercial, já que a Índia não explora comercialmente os seus animais.
“O Brasil é um dos maiores produtores de carne bovina do mundo, e como tal atende os mercados doméstico e internacional. Deve demandar alimentos seguros, de qualidade reconhecida e proveniente de sistemas de produção sustentáveis, ou seja, que respeitam o meio ambiente e o bem-estar animal, e que sejam economicamente rentáveis e socialmente justos.” Este é o início do Manual de Boas Práticas Agropecuárias da Embrapa, que sintetiza bem a realidade da atividade que nos torna um dos principais exportadores de carne do mundo.
Animais e pessoas têm direitos, e fazendas têm função social. Embora a propriedade seja privada, ela cumpre uma função social porque trabalha com um bem que gera benefícios para o clima, para os animais e para as pessoas e famílias envolvidas no sistema de produção, extrapolando a própria área da fazenda. Sendo assim, a Embrapa indica aos produtores brasileiros que se orientem pelo Manual de Boas Práticas Agropecuárias – relançado em 2023 – como uma ferramenta de gestão. O coordenador do CiCarne aponta que “não basta produzir, e produzir bem, é preciso seguir os critérios obrigatórios e os critérios altamente recomendados, bem como mostrar que está em conformidade com o manejo, com a estrutura, com a legislação e com o bem-estar animal”.
Baseado em resultados científicos, este material lista, de forma organizada, os principais quesitos que uma propriedade de pecuária de corte deveria estar fazendo para atingir uma produção de carne que seja segura, competitiva, rentável e cada vez mais sustentável.
Dentre as tecnologias aplicáveis na criação, a reprodução assistida se destaca como uma das mais difundidas na pecuária. E quando corretamente aplicada, traz benefícios como a melhora do material genético, a redução do intervalo entre partos e a produção de animais de maior valor. Inclusive, existe um movimento para ampliar o acesso à tecnologia. O programa Mais Pecuária Brasil, da Confederação Nacional dos Agricultores Familiares e Empreendedores Familiares Rurais (Conafer), é o maior programa de melhoramento genético da agricultura familiar brasileira, com custo zero para os pequenos produtores. Pelo acordo de cooperação técnica firmado com diversos municípios, em todo o país, o programa leva a biotecnologia de inseminação artificial para todas as regiões, com foco especialmente nos bovinos.
O consumo de carne vermelha virou alvo de muitas críticas desde as décadas de 50 e 60, e seu consumo passou a ser menos incentivado. Em entrevista a pesquisadores do Comitê Gestor do Portfólio Carnes da Embrapa, o médico William Rutzen, especialista em clínica médica e medicina intensiva, defende que “a carne está no centro de uma alimentação saudável”.
Após anos de experiência como intensivista e avaliando casos de doenças crônicas, ele concluiu que a resistência insulínica surge pelo estilo de vida das pessoas e é o que realmente pavimenta o surgimento de outras doenças. Rutzen passou a se dedicar ao estilo de vida como uma área de prevenção e se baseia em um estudo de 2019 publicado em um dos maiores jornais de medicina interna para destacar que, conforme tal meta-análise, a carne, nem em sua versão processada, pode ser correlacionada com nenhum tipo de neoplasia, nem mesmo a neoplasia intestinal.
“Hoje podemos falar com convicção que não existe associação do consumo de carne vermelha e da gordura naturalmente presente com doença cardiovascular e nem com nenhum tipo de neoplasia, nem o câncer de colo. Dá para falar isso de forma categórica e é o que tem de ciência mais robusta no momento”, afirma. Outro ponto que o médico destaca é a meta proteica dos alimentos. Ao ingerir produtos de origem animal, a tendência é necessitar de menos alimento, na comparação à ingestão de produtos de origem vegetal, porque eles têm menos concentração de proteína, que é menos biodisponível e menos digerível.